RESENHA: AQUI SE PLANTA, AQUI SE COME, AQUI SE COLHE E AQUI SE PAGA!
Por Carina Zduniak
HARARI, Yuval Noah. Parte DOIS. Sapiens – Uma breve história da humanidade. Trad. Janaína Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 91-175.
NEM TUDO SÃO FLORES
Objetivamente, o autor inicia o capítulo apresentando a transição dos caçadores-coletores para agricultores. Explica que, por mais de 2 milhões de anos, os humanos se alimentavam sem fazer qualquer intervenção na forma natural desse processo, comiam o que estivesse a sua disposição e seu agrado, seja pela caça, pesca ou colheita. As espécies Homo ergaster, Homo erectus e os neandertais colhiam figo silvestre e caçavam ovelhas selvagens, sem desempenhar qualquer esforço ou técnica no sentido de aprimorar, facilitar ou desempenhar outras atividades relacionadas a sua alimentação. Há cerca de 10 mil anos atrás, conforme apresenta Harari, as coisas começaram a mudar, na medida em que os sapiens iam se dedicando a manipulação de algumas espécies de plantas e animais, quase toda a parte de seu tempo diário.
No início, esse processo consistia em espalhar sementes, regar as plantas, arrancar ervas daninhas do solo e conduzir as ovelhas a pastos escolhidos, pois perceberam que com isto, obtinham mais grãos, frutas e carnes. Essas mudanças teriam iniciado aproximadamente entre 9.500 - 8.500 a.C. nas montanhas da Turquia, no oeste do Irã e no Levante, assim define o texto. Onde a domesticação do trigo e bodes iniciou por volta de 9.000 a.C., das ervilhas e lentilhas, em meados de 8.000 a.C., das oliveiras por volta de 5.000 a.C., cavalos cerca de 4.000 a.C., e videiras em 3.500 a.C. e a criação camelos e cultivo das castanhas-de-caju aconteceram em 3.500 a.C., dando fim ao maior movimento da Revolução Agrícola, no qual podemos perceber que mais de 90% das calorias que atualmente nos alimentam, vem dos alimentos domesticados por nossos antepassados entre 9.500 a.C. e 3.500 a.C., conforme o texto, basicamente, arroz, trigo, milho, batata, cevada e painço.
Todavia, nem tudo que servia de alimento para os sapiens poderia ser domesticado, é ocaso das trufas e mamutes. E agora vem o banho de água fria do autor nas ideias do leitor, que precederam a leitura do capítulo. A princípio, aduz o autor, que os acadêmicos declararam que a Revolução Agrícola permitiu a evolução da humanidade, de tal maneira que a capacidade intelectual dos sapiens passou a decifrar os segredos da natureza, e ao passo que ia dominando a agricultura, abandonavam a vida selvagem dos caçadores-coletores. Nada disso! Harari alega que tudo isso não passa de fantasia, e nos elucida que na verdade não há qualquer indício que as pessoas ficaram mais inteligentes com o passar dos anos na nova vida dos agricultores, como também, que os caçadores-coletores dominavam diversos segredos da natureza muito antes da Revolução Agrícola.
Contudo, segundo o texto, a vida de agricultor, tornou as condições do homem mais difícil e menos satisfatória em relação aos caçadores-coletores. Tais fatores podem ser exemplificado de tal maneira: os caçadores-coletores passavam mais tempo em atividades variadas, deste modo estavam menos propensos a contrair doenças ou eram ameaçados pela fome; a dieta dos agricultores era muito reduzida e abundante em relação ao que produziam; apesar de terem menos tarefas, os agricultores não tinham mais lazer; os agricultores se sentiam mais confortáveis com essa vida e procriavam muito mais, originando as elites favorecidas; em média os agricultores tinham que trabalhar muito mais pela sua alimentação do que os caçadores-coletores.
E ainda tem mais, o autor nos mostra que “as plantas domesticaram os Homo sapiens, e não o contrário “(p.87), do ponto de vista do trigo, ele foi “manipulando o Homo sapiens a seu bel-prazer" (p.87), de tal maneira, que em alguns milênios os humanos estavam se dedicando ao trigo que plantavam desde o momento que acordavam até a hora que iam dormir, aos poucos foram conhecendo o trigo e quais eram as suas exigências para a prosperidade dos Sapiens. Além disso, o texto ainda apresenta os males na biologia e saúde dos sapiens agricultores causados pela adesão às novas atividades de cultivo do trigo e outros, tais como, deslocamento de disco, artrite e hérnia. Outros fatores trazidos pelos estudos de Harari dizem respeito a necessidade de se instalarem próximo aos campos de cultivo, em decorrência do tempo que se desprendiam para cultivar; o trigo não dava segurança econômica, pois os caçadores-coletores contavam com dezenas de espécies de plantas e animais para satisfazerem sua dieta e paladar, ao contrário dos agricultores que contavam com uma pequena quantidade de plantas domesticadas, além de que, as plantações dos sapiens agricultores poderiam ser atacadas por gafanhotos ou sofrerem alagamentos e se perderem na correnteza da água.
A GUERRA PELA COMIDA
O fato de os sapiens terem encontrado um meio de domesticar a si próprio pela prática da agricultura e identificarem fatores como a abundância do trigo, esses mesmos acontecimentos os tornaram escravos de tais procedimentos rurais, pois necessitavam dormir e se alimentar, entre outras necessidades inerentes a sua subsistência, próximos as terras que o trigo escolhia para ser cultivado, de tal modo que pudessem desempenhar todas as tarefas que essa atividade exigia, também reduziram a ingestão de calorias a apenas aos alimentos que cultivavam; os sapiens passaram a diversas doenças em sua estrutura física, pois estavam se especializando na agricultura e deixando de lado as outras habilidades dos caçadores-coletores.
O capítulo aborda como o compartilhamento do DNA se multiplicou em uma avalanche de nascimentos, isso porque a sensação de conforto que os agricultores sentiam em relação a quantidade trigo que uma safra poderia produzir os faziam ter uma ideia de abundância eterna, de modo que alimentavam seus familiares com fartura naqueles períodos. Mas, nem tudo são flores, e nem todos os sapiens estavam dispostos a trabalhar nas mesmas atividades que os agricultores, dando origem as guerras pela comida, onde os mais fortes e mais influentes usurpavam aquilo que foi produzido pelos agricultores mais fraco, expulsando-os de suas terras e assentamentos produtivos além de, anos mais tarde, com a criação das estruturais sociais de dominação entre os povos, como por exemplo os impérios, esse agricultores menos violentos e mais fracos quando perdiam suas terras ou batalhas iam servir de escravos ao imperador.
Observamos nesta fase também, a exigência de tributos pelas cortes e exércitos aos agricultores, em troca de proteção ou sob discursos de crenças em divindades superiores, que poderiam representar até mesmo a totalidade da produção anual em estoque para as estações climáticas escassas pelas famílias agricultoras no território do imperador.
Outro ponto muito importante que o Harari aborda, é a violência desmedida que os sapiens da mesma classe social imputavam a seus familiares, vizinhos ou conhecidos, configurada pelo roubo dos estoques que determinado agricultor possuía, no infanticídio aos recém-nascidos de uma família sem muito recursos e as disputas entre indivíduos que sempre resultava em morte. Essas estruturas que as fazendas possuíam os afastaram de animais ferozes, mas implicaram na guerra pela comida de homem contra homem.
O PREÇO DO DNA COMPARTILHADO
Com o passar dos anos, é possível perceber no texto, que as maiores estruturas rurais como cidades, reinos e impérios, permitiram aos sapiens, especificamente às mulheres, uma alimentação contínua de calorias e proteínas, tornando-as saudáveis e férteis cada vez mais cedo para procriarem, permitiu também que, alimentassem seus bebês com mingau, desmamando-os mais cedo também. O que os sapiens agricultores não perceberam, é que além do aumento do número de crianças na comunidade ensejar no acumulo de doenças, essas eram compartilhadas por todos e muitas sem cura. Essa reprodução superava a geração
anterior pela escolha do mesmo estilo de vida, sem que houvesse o aumento significativo da produção, muito menos da diversificação dos alimentos que consumiam. Sendo que, conforme os estudos do autor, a única solução que encontravam era trabalhar mais. No entanto, as doenças nos bebês só aumentavam, com sistemas imunológicos debilitados pela ausência do aleitamento materno, famílias e comunidades inteiras superpopulacionadas e expostas as secas “aceitavam” trabalhos degradantes em troca de comida. Muito parecido com o que vemos atualmente no mito do mercado de trabalho jovem, onde vendem a sua força de trabalho e criatividade com a ideia fantasiosa de um futuro promissor na carreira, um dia.
ALIMENTAÇÃO E COGNIÇÃO
Apesar dos inúmeros erros de cálculo nas estratégias adotadas pelos sapiens fazendeiros e agricultores, e nas ondas gigantescas de males que a Revolução Agrícola ocasionou na humanidade, esses movimentos não foram planejados, não houve um povo ou grupo que tinha como meta transformar o mundo em uma enorme fazenda com objetivos e propósitos bem definidos, esses acontecimentos ocorreram de forma autônoma e apartada, sem qualquer vínculo entre o cultivador asiático com o americano ou o europeu, nem mesmo possuíam estratégias a longo prazo. Ocorre que, ao que se percebe na abordagem dos textos “Intervenção divina” (p.95), “Vítimas da revolução” (p.98), “Uma ordem imaginada” (p.108) e “Assinado, Kushim” (p.128), a agricultura esteve desde o início relacionada a visão e interpretação dos sapiens aos fenômenos biológicos, sociais, políticos e ambientais. No texto “Intervenção divina” (p.95), Harari apresenta imagens como as estruturas de pedras extremamente pesadas no sudeste da Turquia e na Inglaterra, posteriormente chamadas de Gobekli Tepe e Stonehenge, que teriam sido construídas por caçadores-coletores, cujos objetivos ainda são um mistério para a ciência, no mais, alguns estudos relacionaram Gobekli Tepe ao cultivo de uma espécie de trigo, podendo indicar que essa construção era o marco central e inicial para a criação de um vilarejo ao redor. Já no texto “Vítimas da revolução” (p.98), podemos estar diante das mais diversas crueldades praticadas com animais nos processos de domesticação até hoje, causados pelos agricultores para alimentar a humanidade e ter o domínio sobre essas espécies, como é o caso da criação de galinhas, ovelhas, bois e porcos, dando um aroma e sabor amargo aos nossos “deliciosos” jantares em família.
Nos textos “Uma ordem imaginada” (p.108) e “Assinado, Kushim” (p.128), é possível que façamos uma análise acentuada no que diz respeito ao que estavam pensando os nossos antepassados nesses processos transitórios da Revolução Cognitiva e Revolução Agrícola, pois uma não anula a outra, todavia, nem todos os sapiens estavam cultivando a terra, como também, nem todos estavam organizando a sociedade ou servindo nos grandes exércitos e desenvolvendo tecnologias que pudessem ser capazes de aprimorar as práticas agrícolas, produzindo mais em espaços menores.
Isso não significa dizer que as soluções vieram como uma luz que permitia aos agricultores prever e solucionar antecipadamente acontecimentos futuros, mas sim, vieram para dirimir situações que estavam acontecendo reiteradas vezes, dentro das perspectivas da época, seja dos reis, seja dos fazendeiros ou dos imperadores, a exemplo disto, a criação do código de Hamurabi que visava instalar a paz a seus liderados em uma ideia de justiça, ou mesmo a Declaração de Independência dos Estados Unidos, que trouxe a ideia de igualdade e direito natural aos cidadãos estadunidenses, para Harari, isso é uma fantasia compartilhada para trazer uma sensação de conforto e igualdade que não existe. Neste ponto, ele cita a afirmação de Voltaire, “Deus não existe, mas não conte isso a meu servo, para que ele não me mate a noite”, contudo nesse ponto a filosofia é divergente, haja vista que Shakespeare já nos alertou para que “Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia” (Segredo de bruxo, apud TAS, Marcelo, site Revista Crescer), aliás, não podemos limitar o que existe a capacidade cognitiva de um cérebro humano, ainda que este seja um renomado estudioso.
Para finalizar, apesar de muitos infortúnios da Revolução Agrícola até hoje, foi nas atividades agrícolas dos sumérios onde se desenvolveram os primeiros símbolos que deram origem a linguagem escrita e verbalizada de códigos específicos ou gerais que temos hoje, apesar de que a época, a finalidade era específica de mensurar quantidades e períodos da produção de cevada. Esse sistema de escrita parcial foram os insights que a humanidade necessitava para dominar muitas outras técnicas por meio da escrita, muito embora, escrituras importantes tenham se perdido nos embates, guerras, condições climáticas, ambientais e de armazenamento, atualmente reconhecemos na escrita o veículo mais eficaz para traduzir efeitos não aparentes do mundo das ideias da mente humana.
REFERÊNCIA BIBLOGRAFICA
TAS, Marcelo. Segredo de bruxo. Revista crescer. São Paulo. Disponível em: < https://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,EMI252465-17858,00-SEGREDO+DE+BRUXO.html> Acesso em: 01 de setembro de 2.021.


