Crônica: BAGAGEM GENÉTICA
Na
tarde da segunda passada, às 15:25, eu estava parada, olhando para o alto do
prédio comercial que fica lá na praça do Correio, tentando atravessar o olhar
por entre a vidraça empoeirada e descobrir o que acontecia no 11º andar. Tinha
uma movimentação estranha lá, bom… para mim era estranha! Duas mulheres
carregaram uma caixa enorme até o lado esquerdo do andar, e quase todas as
pessoas que estavam com elas se agruparam em volta para saber o que iria sair
de lá, tamparam a minha visão! Fiquei intrigada pensando o que era tão pesado e
atraente que aquela caixa cheia de selos portava. Certamente ela teria vindo de
longe!
- Ai meu pé! – exclamei.
- Me
desculpe – disse ela.
Uma
moça um tanto quanto desajeitada passou com a rodinha da mala em cima do meu
pé. Doeu pra “burro”, pois estava de chinelos. Eu queria xingar, afinal tanto
espaço que tinha para ela passar e veio logo aqui, no meu pé? Mas aquela mala
toda desbotada acessou meu lado sensível, lembrei da minha história, de suas
mudanças e reviravoltas. Resolvi sentar e observar ela atravessar o farol. A
medida em que ela foi se distanciando, foi me dando uma nostalgia, uma
angústia, lembrei das minhas malas, que me acompanharam em tantas transições,
algumas eu jurei esquecer, afinal, lembrar pra quê? Para sofrer? Credo, tô
longe disso!
Foi
inevitável, tentei fugir de meus pensamentos, mas logo lembrei da minha malinha,
que me acompanhava no trabalho, eu levava só o necessário, mas ainda sim
precisava dela. Em seguida, lembrei da minha mala preta, que só usava para
viagens de alto padrão, com acabamento impecável em carbono, ela resistia a
toda a movimentação dos aeroportos, rodoviárias e até nos hotéis onde eu ficava
hospedada. Até que cheguei nela, a mala desbotada que ganhei da minha mãe, que
ganhou da minha avó paterna, que ganhou da sogra dela. E sabem onde foi feita?
Na Rússia! Em 1.890! Só Deus sabe os caminhos que ela percorreu nas mãos de
meus ancestrais até chegar nas minhas, de certa forma quando eu olhava para ela
eu sentia, parecia que queria me falar algo, contar a sua história, “Ah se mala
falasse…”. Ela era linda, um tom de verde musgo, que foi desbotando em suas
experiências.
Quando
eu ia na casa de minha avó, eu observava suas coisinhas na penteadeira, um
único casaco e seus poucos vestidos, parecia estar disposta e preparada para
partir a qualquer instante. Ela era italiana, conheceu meu avô polonês, aqui,
no Paraná. Eram judeus disfarçados de católicos para não morrerem física ou
socialmente, até nomes diferentes tiveram de adotar, afinal, a religião oficial
do nazismo e do fascismo era a católica romana. Desde que a guerra foi
instalada lá na Europa a rotina deles era se mudar. Acho que herdei essa
transitoriedade! Ou era a mala que sussurrava em meus ouvidos dizendo que é a
hora de partir, rumo ao novo.
E
então, comecei a chorar. Quando penso na história deles e nos movimentos que os
fizeram mudar, até meus pais mesmo, em busca de emprego e sossego para dormir,
me dá uma imensa tristeza, parece que acesso a memória energética da dor e
sofrimento a que foram submetidos. Neta de judeus, negros e índios,
perseguidos, fugitivos e refugiados, carrego na mala e bagagem genética as
emoções de situações que meus antepassados enfrentaram. Ano passado, antes da
pandemia, eu despachei a mala num brechó, para não ter mais que olhar e lembrar
das histórias que ouvi de quem mais amo, além de que, era de mão, muito difícil
de carregar.
E
de repente, a galera lá do 11º andar foi se afastando da janela, torci para
conseguir ver o que tinha na caixa. Fiquei até de pé. Não! As mulheres a
fecharam. E levaram a caixa embora. E não vi! Até que um cara, lá na janela, fitou
os olhos em mim, eu sorri, mas ele logo fechou a cortina e eu não vi mais nada,
nem a expressão no rosto daquelas pessoas.
Resolvi
voltar para casa, ali pertinho, ferver um chá, do jeitinho que minha mãe, a
Dona Ivone, me ensinou, porque mesmo com a bagagem cheia, na minha história de
vida ainda cabe muito mais para viver e levar nessa viagem que acabei de
embarcar. Atravessei a praça, olhei para os dois lados da avenida, já que não
vinham carros de lá e nem de cá, me coloquei a andar, de mãos vazias, olhos
sorrindo e mente cheia de histórias para contar.


