Pés de lótus
Em contagem regressiva para o final do ano de 2.020, hoje, dia 30 de dezembro, quero compartilhar um pouquinho com vocês das minhas maiores e mais dolorosas chagas, em especial aquelas que ainda estão em processo de cura. Sem ser muito detalhista para não me estender e tornar a leitura chata e redundante vou discorrer nos próximos parágrafos o que me machucou e que tive de possuir muita sabedoria, muita mesmo, para que eu pudesse compreender tais acontecimentos e por analogia a tradicional cultura chinesa dos Pés de lótus, desde a infância, calcei meus sapatinhos número 33 em pés 38 e comecei a aprender a andar mesmo com os dedos quebrados, por achar que aquilo era o melhor a se fazer.
Pra começar, eu tive uma criação de contos de fadas, com muito
encanto e amor, mas em algum mês de 1994, quando eu tinha apenas três aninhos,
fui vítima de abuso sexual por um vizinho, o rapaz tinha 17 anos e por estratégia
dos pais, se escondeu em alguma cidade longe dali, que impossibilitou que ele
respondesse judicialmente pelo que fez. Não me lembro muito do que aconteceu
depois, mas lembro muito bem de tudo o que ele fez comigo e o que falou, sei
também que não consegui contar aos meus pais, somente pelo comentário de uma
priminha que sabia do que tinha acontecido é que meus pais ficaram sabendo, o
pior de tudo é o crime foi reincidente e outras crianças também foram vítimas.
Cada uma carrega em si alguma coisa daqueles acontecimentos e eu carreguei
traumas que ainda estou me curando, passados 26 anos desde aquele dia. Mas que
graças a um intenso trabalho com psicólogas e espiritual em centro xamânico que
frequentei no ano passado passei a enxergar essas feridas para curá-las e seguir
adiante, pois até aqui percebo que vivi com essa sombra horrível em mim.
Outro fato que me deixou muitas cicatrizes no coração foi a violência doméstica que vivi em casa, em decorrência do alcoolismo
desde os meus 11 anos de idade, onde meu pai, um alcoólatra que não estava em
tratamento, se embriagava nos bares na rua de casa ou no caminho de volta do
trabalho e chegava em casa e agredia as filhas fisicamente e a esposa
verbalmente. Na época eu só conseguia pensar que eu tinha que proteger minhas
irmãs e minhas mãe. Após a separação dos meus pais, eu pude voltar a enxergar
meu pai com o carinho e cuidado que ele merecia por ser uma pessoa doente e que
estava lutando bravamente contra aquilo, pois mesmo que passamos muitos
momentos que me traumatizaram eu via nele um menino, alegre e maluquinho que
precisava de amor. E me doía muito ver as pessoas na rua debocharem
dele e usarem ele como uma atração.
Neste mesmo período, o desemprego, a obesidade e as mágoas pelos
problemas em casa fez de minha mãe prisioneira em sua própria casa e corpo, ela tinha
vergonha de sair, pois mal podia colocar os pés na calçada e ouvia comentários
sempre a respeito de sua aparência física, “como você está gorda”, diziam a
ela, além de que quando ela saia de casa era sempre objeto de cochichos no
transporte público, ou mesmo da intolerância, fortalecendo mais ainda seu
desânimo em sair de casa, preciso dizer a vocês, que meus pais era viajantes
livres, sempre acampavam em lugares paradisíacos e ambos, ficaram prisioneiros
dessas doenças anos antes de falecerem.
Por conta do alcoolismo do meu pai e das constantes agressões, aos
18 anos, fui morar com familiares e amiga, mas logo que a decisão judicial da
separação saiu em 2010, eu voltei pra pertinho de minha mãe, mas confesso que
dentro de mim tinha uma vontade imensa de morar sozinha e conhecer o mundo, mas
não nessas circunstâncias.
Em 2012 minha mãe veio a óbito e tudo em minha vida desestruturou,
parecia que eu estava à deriva, sem minha melhor amiga pra eu compartilhar momentos
e narrativas que ela tanto amava, mas encontrei forças para dar continuidade na
minha vida, como eu disse no texto “A vida que levo adiante”, conheci muitas
pessoas com histórias de vida cheias de lutas assim como a minha que me
ajudaram muito na minha recuperação, mas nada comparado ao Amor que eu sentia
pelos meus familiares e amigos.
Depois, em 2015 meu pai faleceu, e para quem leu a “A vida que levo
adiante” sabe, comecei um novo caminho, mais sólido e cheio de forças,
retomando antigos projetos e saboreando o prazer de viver cada minuto.
Outras situações me marcaram e deixaram chagas que já foram
curadas, saibam que compreendi que existe a tal da ação e consequência, mas
quando se trata de amor ao próximo, existe ação e transformação. E sei que não
dei causa as coisas que me machucaram, mas tudo isso vou transformar, em início
depoimento (a luta comigo mesma em extrair de mim aquilo que está me
machucando) e posterior luta e política publica seja pelas vias tradicionais ou
inovadoras.
Por fim, como é de conhecimento de muitos, eu me graduei na
faculdade de Direito e assim como na área jurídica, trabalhei em muitas áreas
que exigem aspectos físicos de acordo com tal EXIGÊNCIA DO COONTRATANTE/CLIENTE,
apesar de ser uma moça muito vaidosa e que ama usar diversos figurinos,
cabelos, cores, maquiagem, até mesmo travestir em curtos períodos, gosto de ser
livre para essas escolhas e não ter que me lapidar para agradar aos “OLHOS” do
contratante ou até mesmo das pessoas carregadas de preconceitos, desta forma
sofri MUITO, apesar de não manifestar esse sofrimento com muitas pessoas por
acreditar que não valeria a saliva. Em grande maioria, foram mulheres que me
julgaram, seja pela minhas doenças, “ANSIOSA! CALMA!”, “QUE ISSO NO SEU BRAÇO?!
AI QUE AGONIA!ISSO PASSA?! NEM TUDO É PERFEITO NÉ?!”, pelas minhas roupas, “curtas”
de mais, “justas” de mais, “preto” de mais, “colorido” de mais, “amassado” de
mais, “cheio de bolinhas”, “cabelo sujo”, “cabelo feio”, “cabelo ressecado”, “cabelo
preso” de mais, “maquiagem de puta”, “maquiagem de bruxa”, “maquiagem horrível”,
“sem nenhuma maquiagem, credo!”, “parece um fantasma”, “sua roupa parece uma
camisola!”, “que unha pequena!”, “passa um esmalte nessa unha!”, deixo claro
que sempre expressei muito respeito e empatia pelas pessoas com que tive o privilegio
de trabalhar, mas acontece que, quando esses fatos se normalizam, passamos a
pensar que o desrespeito que mora nos olhos do outro está em nós e dentro
daquele núcleo passam morar normas e procedimentos contrários ao respeito.
Assim dizia Raul Seixas na música Sapato 36, e repito a
respeito dos caminhos que escolhi seguir, em mim, em minha jornada de AMOR, FÉ
e TRANSMUTAÇÃO.
Fiquem com a letra brilhante deste astro que não tive o prazer de
conhecer e que seria um grande ícone na China antiga, libertando muitas moças
das regras rígidas das tradições, assim como me liberto hoje de tudo aquilo que
um dia me fez me machucar para caber onde é pequeno de mais para mim.
SAPATO 36
Por Raul Seixas
“Eu
calço é 37
Meu pai me dá 36
Dói, mas no dia seguinte
Aperto meu pé outra vez
Eu aperto meu pé outra vez
Pai,
eu já tô crescidinho
Pague pra ver, que eu aposto
Vou escolher meu sapato
E andar do jeito que eu gosto
E andar do jeito que eu gosto
Por
que cargas d'águas você acha que tem o direito?
De afogar tudo aquilo que eu sinto em meu peito
Você só vai ter o respeito que quer na realidade
No dia em que você souber respeitar a minha vontade
Meu
pai, meu pai
Pai,
já tô indo-me embora
Quero partir sem brigar
Pois eu já escolhi meu sapato
Que não vai mais me apertar
Que não vai mais me apertar
Por
que cargas d'águas você acha que tem o direito?
De afogar tudo aquilo que eu sinto em meu peito
Você só vai ter o respeito que quer na realidade
No dia em que você souber respeitar a minha vontade
Meu
pai, meu pai
Pai,
já tô indo-me embora
Eu quero partir sem brigar
Já escolhi meu sapato
Que não vai mais me apertar
Que não vai mais me apertar
Que não vai mais me apertar.”



