Aqui no fundo escuro
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Navegamos rumo ao desconhecido,
Sem nos lembrarmos da partida,
Sem choros ou despedidas,
Nos colocamos amontoados,
Naquele porão escuro e imundo,
Eu precisava encontrar um jeito de morrer de fome,
Antes que chegasse em terra firme,
Uma doença talvez poderia nos libertar daquelas correntes apertadas,
Nos separavam de nossas famílias e nos colocavam junto com membros de tribos vizinhas,
Rivais,
Só para que que as rixas que tínhamos nos separasse mais,
Toda machucada,
Ensanguentada,
Resultado do açoitamento,
Pela minha resistência,
Em ser retirada da minha vida leve,
Na encosta do rio,
Lavando minha roupa,
Mas...
E minha filha?
Eu nunca mais a verei,
Minha pequena,
Como foi que cheguei aqui?
Desmaiei,
A dor já estava fazendo parte de mim.
Nada comparado a minha alma,
Uma mãe separada de sua filha,
Sua família,
Casa,
Arrancaram minhas asas,
E fizeram de mim bicho,
Lixo,
Só Deus sabe o que vai acontecer quando eu chegar lá,
Esses homens brancos que tanto falam e eu nada entendo,
Nada!
Ninguém por aqui se manifesta,
O trauma na pele, na carne, na alma, faz com que fiquemos imóveis,
Olhos opacos,
Quando não estão inchados,
Espancados,
Eles nos torturam,
Mas nada que nos faça parecer mais "feios",
Nada que faça com que o meu preço não seja alterado no mercado.
Quanto valho?
Uma ou duas moedas de prata talvez,
Se soubesse teria trocado algumas pepitas pela vida e liberdade de minha filha,
O que querem de mim?
Lá no andar de cima eles riem,
Bebem,
Comem,
Dormem,
Eu durmo e peço para não acordar,
Um naufrágio não vai adiantar,
Estamos acorrentados uns nos outros,
Se o mar um puxar,
Pouco a pouco todos morrerão afogados,
Não é o que desejo nem ao meu pior inimigo,
A umidade e os bichos nem me incomodam mais,
As baratas grudadas em minhas feridas me deixam cheia de infecções,
Eu não vou resistir,
O que foi que eu fiz?
Só não quero que o desespero tome conta de minha mente,
Já não sinto mais frio,
Devem ter alguns corpos apodrecendo,
Estamos tão quietos que nem dá pra saber,
Quem está vivo e quem está morto,
Fiz cortes no braço pra acompanhar os dias,
Já são 47,
Essa sensação de dor me faz sentir viva,
Carne,
Parte de minha pele está cozida pelo contato com essa água podre,
E parte de tão ressecada quebra,
Eu posso contar meus ossos,
Ver os ligamentos,
Óh Deus... eu não aguento mais!
Eu vou cantar bem alto e silenciosamente,
Calando as vozes em minha mente,
E me juntar aos meus ancestrais,
Estes irmão e irmãs não querem estar aqui,
Muitos assim como eu, nunca quiseram olhar além do mar,
Nos arrancaram de nossa escolha,
Minha vida,
Minha liberdade,
O que foi que eu fiz?
Deus fará justiça!
Será que um dia essas pessoas vão enxergar,
Que isso é errado?
Que isso é ruim?
Somos humanos,
Eu só queria ser livre para fazer minhas escolhas...



