Crônica: CONTA comigo?
Sempre ouvi de minha mãe que devo contar tudo, mãe é um bicho sabido, ainda que não saibamos interpretar tudo o que dizem já na primeira vez que ouvimos, um dia saberemos e contaremos para alguém, no mesmo "ar da graça" que recebemos.
Dona Ivone era tão esperta, que sabia que riqueza e pobreza é um paradoxo de ponto de vista, já que ela era rica, muito rica, de tudo aquilo que quem soma dinheiro não consegue juntar, ou é um ou é outro, os dois não dá. Sem contar aquilo que quem só vê dinheiro não consegue ver, vista valiosa. Antes que me perguntem, sim, ela era a minha mãe. Ela também foi a primeira a me falar que quem conta um conto aumenta um ponto sem contar o número de caracteres ou de linhas e quem não tem dinheiro conta história, assim, quando puxo na memória a palavra conto já remeto a ela.
Não pense você leitor sabichão que o contar da cosmovisão da Dona Ivone parava por aí, não não! Ela contava tudo, até os grão de arroz dum saco se fosse necessário, contava quantos minutos trabalhava e quanto iria ganhar, contava quanto disso ela precisava e quanto podia pagar, contava quantos minutos faltavam para o ônibus passar e a hora que eu iria chegar, contava quantos dias o legume estava na geladeira e que dia iria estragar, caçava e contava moedinhas pela casa para que pudéssemos adivinhar, se acertasse quanto tinha era nosso, se não ela escolhia uma coisa coisa bem gostosa pra comprar, tipo pãozinho fresco e mortadela Marba, que além de muito gostosa era a marbarata também. Contava o que a chateava e o que a alegrava, como deveríamos escovar os dentes e limpar a casa e o que tudo isso significava na verdade da vida.
Ela contava histórias reais, da vida dela, de seus parentes, amigos e conhecidos, se bem que se vocês conversassem uns minutinhos imediatamente se tornaria um grande amigo, e poderia com ela sempre contar. Você acha que sempre tinha a mesma versão? Isso jamais! Trocava o nome das filhas, não se recordava quem foi esquecida da igreja ou quem deu mais trabalho no parto. Isso me deixava irritada, pois haviam coisas que eu era a protagonista e ela insistia que era a Mandinha, minha maninha mais nova, ou a Sá, adianta contestar? Quem teria mais credibilidade? Ela né?! Deixei pra lá...o importante mesmo era contar.
Faltando uns 10 dias para o pagamento cair na conta era uma contação que só naquela casa de 7, 7 watts de energia no máximo por dia, por isso medíamos o hora-a-hora, quando estava chegando perto, era uma loucura, TV desligada, luzes apagadas, ficávamos a base da lanterna, vela e claridade do fogão, sorte que a gente nem tinha microondas, já ajudava, banhos rapidinhos, roupas passadas somente aquelas necessárias. A gente contava. Água não era tão caro mas a gente não desperdiçava e nos dias de aperto também era contado. Conta na caixinha do correio e só de ouvir aquele barulhinho a gente já corria curiosa para saber quando foi a medição do mês, pedindo a Deus que a missão economia tenha sido um sucesso, geralmente era, sabíamos correr atrás do prejuízo de não contar tudo todo o tempo.
Quer saber qual era a especialidade dela? Conta de rescisão, nada de maquinha, programas de cálculo ou qualquer outro tipo facilitador, há há há há, se alguém lá em casa almejava pedir as contas, era só pedir pra ela contar, em menos de um minuto ela apresentava os resultados, de cabeça! Ai ai Dona Ivone, alguns diriam que a Senhora seria maravilhosa no RH, mas só quem te conheceu que sabe que mais do que contar o que te deixava feliz de verdade era o contexto escolar, todas as oportunidades de criar, atualizar, acesso ao lúdico, as crianças, a juventude, a possibilidade de errar e poder refazer.
Preciso contar do sistema de produção familiar de colares e brincos de conta, aos 9 ou 10, umas das minhas primeiras experiências com o sistema fordista e conceitos marxistas da mais valia, contratavam a gente. Entregavam as contas, os fios e fechos e ali a mágica acontecia, 3 centavos cada par de brinco pronto, "mas até que valia a experiência de estar com a família reunida!". Sabe o que era outra área de especialidade dela? Ensinar a qualquer um que assuntos de violência sempre é da nossa conta, então desde pequenina ganhei uma colher pra meter onde eu quiser, além de que, quando a saudade bater forte a gente deveria entrar em contato e contar todos os segredos do coração.
Ela contava muitas vezes para dizer aos filhos do Tempo "Hey milésimo de segundo, eu te vi! E gostaria que não passasse despercebido.", ou para aquele punhado de arroz de ontem que muitos jogam fora "Hey grãozinho de arroz, ontem iguais a você, saídos da mesma panela saciaram minha fome e não é porque está aí no fundinho grudadinho com esses aí que vou te descartar, Carina traz a farinha, hoje teremos bolinho de arroz frito!". E muitas outras coisas pequeninas eram escaneadas por aquele olhar, que via e contava.
Eu estou com 33, contagem progressiva iniciada no dia 08/02/1991 às 13:40h, no Hospital São Lucas de Diadema. Ela se foi quando eu estava com 21, 12 se passaram né? O tempo não perdoa, então eu fico de olho nele e conto tudo o que vejo, apesar de tentar me embebedar com a alegria daquele segundo que logo vai acabar, pois ele sabe que fazemos explodir as emoções, com efeitos a outros segundos se espalhar e quentinhos ficamos lentinhos. Assim, ligeira, depois de tantos anos estudando os saberes exclusivos da Mamusca, quando o Tempo diz que não tem a possibilidade de dar certo, eu observo com os olhos de escaner que ganhei dela e digo "Tem pô! CONTA comigo?".
Um pouquinho mais ...
E aqui abaixo um conto popular árabe, que se conecta a crônica, aos saberes de Mãe compartilhados aos filhos e a todos que tiverem Tempo e possibilidade no seu Aion de ouvir, ler, escanear e compartilhar.
Esse vídeo, vai relaxar a sua vista, cansada de ler.



